Como me foi pedido semana passada, hoje falarei um pouco a respeito dos desafios de se escrever steampunk. Para quem não conhece, este é um subgênero da ficção científica derivado do Cyberpunk surgido no final dos anos 1980 e início dos anos 1990 (evidente que existem obras anteriores, do século XIX inclusive, mas editorialmente elas são consideradas pré-steampunk). As obras originariamente eram ambientadas na Era Vitoriana, mas com o tempo o steampunk se desenvolveu e as histórias já podem se passar no futuro distópico, num passado mais distante ou mesmo em um universo paralelo com características similares, desde que a tecnologia disponível usasse a ideia de paradigmas tecnológicos modernos ocorrendo mais cedo do que na História real, em sua maioria usando a tecnologia do século XIX, como o vapor (daí o nome ‘steam’, ‘vapor’) que movimentaria trens, carros e tanques, além de dirigíveis ou computadores de Babage (conhecido como Máquina Diferencial, foi esse aparato que nome à obra de Willian Gibson e Bruce Sterling que iniciou o gênero).
Apesar de bastante maleável, podendo desde ter o tópico principal de um romance até mesclar-se com outros gêneros, como a Fantasia, o Policial ou o Terror, só para dar alguns exemplos, podendo servir só como ambientação, como qualquer gênero literário, o steampunk também possui seus desafios. No caso, por ser bastante visual, a maioria destes se baseia na verossimilhança. Isso, pois quando se fala de tecnologia a vapor ou a realidade do século XIX, se por um lado o acesso à informação é farto, por outro ele não é, de modo que se a devida pesquisa não for feita, muitos erros serão cometidos e isso pode acabar com a credibilidade da história, coisa que vi acontecer inúmeras vezes como organizador e editor que fui.
Um exemplo clássico a respeito da tecnologia do vapor, em especial de autores mais jovens, é esquecer que um aparato a vapor não funciona só com calor (normalmente gerado por queima de lenha ou carvão), mas que água também é necessária para a geração de pressão. Deste modo algo pequeno, como um automóvel a vapor, não seria prático. Isso, pois não só ele demoraria muito para começar a andar, pois a água precisa de aquecer, como teria uma autonomia e uma velocidade ridiculamente baixas. Um exemplo disso é a Máquina de Cugnot, que segundo alguns estudiosos pode ter sido o primeiro automóvel inventado. Ela não fazia 4 km/h (FALA SÉRIO! Eu não vou nem falar de cavalo, mas uma pessoa andando pode chegar a 6 km/h) como também precisava de quinze minutos para começar a fazer vapor e tinha uma autonomia de somente outros quinze minutos. Assim, uma perseguição com duas destas seria verossímil só numa comédia bem pastelão.
Outro exemplo é o avião. Apesar do primeiro voo do 14-Bis só ter acontecido no final de 1906, se pode achar inúmeras ilustrações de aviões à vapor steampunk na internet, mas pelos mesmos motivos de automóvel, eles eram algo praticamente impossível dentro da Era Vitoriana. Na realidade, segundo eu pesquisei, houve uma tentativa que voou com sucesso, apesar de bem depois de voos como o de Santos Dumont ou dos Irmãos Wright, ambos já se utilizando de motores de combustão interna, que eram muito mais leves e potentes. Ou seja, novamente é uma tecnologia que pode fazer da história inverossímil.
A questão da tecnologia, inclusive, é uma variável problemática, pois se por um lado os demais aspectos da história podem fazer com que o leitor considere alguns deslizes quanto à verossimilhança aceitáveis, ficar na dependência do que o leitor achar pode ser bem perigoso. Isso, pois é claro que, além dos desafios inerentes ao steampunk, ainda temos todas as questões que podem ser problemáticas em qualquer história, como a necessidade de empatia do leitor para com os personagens, o cuidado na estruturação e apresentação da história, sem contar evidentemente com a devida dosagem na descrição.
Este, inclusive, é um ponto bastante sensível neste gênero literário. Primeiro, porque no caso existe a necessidade de que haja descrição de tecnologia, pois essa é uma das características do gênero, mesmo assim se deve pesar a mão muito bem, para não criar exageros que deixem a história chata ou, como eu apresentei em meu artigo a respeito de descrições de duas semanas atrás (Falando Um Pouco (Ou Descrevendo) O Excesso De Descrição), não crie com o excesso de descrição pontos de tensão que depois não serão utilizados, deixando o leitor decepcionado.
Inclusive, ainda falando a respeito de descrição, outro ponto é a ambientação da história. As cidades! Como eu já coloquei acima, muita pesquisa é necessária, pois a maioria das cidades não era no século XIX como é hoje em dia. E por mais que se possa considerar que o próprio excesso de tecnologia do steampunk pode fazer com que algumas coisas sejam modificadas, evidentemente que nenhuma cidade do século XIX será semelhante ao que ela é atualmente, então, muita pesquisa ao fazer sua história, seja em São Paulo ou no Rio de Janeiro, como em Londres ou Paris.
Na verdade mesmo quando a história acontece em outro mundo, algumas semelhanças devem ou podem se manter, para que o leitor perceba durante a leitura o gênero que está lendo. Os vestuários, por exemplo, são outro detalhe, seja pela época como pelo gênero. No caso do steampunk a principal peça de vestuário é o corselete feminino. Por outro lado quando falamos de século XIX, uma mulher usando calças seria algo impensável. Eu sei que pode ser um detalhe e que, desde que o gênero se ampliou, de modo que atualmente existem até distopias steampunk, como a série Mortal Engines (já lançada no Brasil e que sairá no cinema no final deste ano) um vestuário específico não é necessariamente utilizado, mesmo assim a ideia de gerar empatia no leitor é apresentar uma história com o maior número de características do gênero.
Eu poderia continuar, comentando outros diversos elementos, como, por exemplo, a fala. Na Era Vitoriana (como na idade média ou em qualquer outra época) o modo de falar era muito diferente da atual. Mesmo assim, como eu mesmo já discorri a respeito em outros artigos, editores de fantasia e ficção cientifica raramente aprovam histórias em que os diálogos tentam usar elementos de linguagem antigos. Isso, pois eles não só deixam a leitura pesada (em especial em textos longos), como, tendo em vista que a maioria dos escritores não é linguista, normalmente muitos erros são cometidos.
Assim, o que tenho a dizer é: apesar de ter de escrever o que gosta você deve pensar em seu leitor. O processo de leitura deve ser algo agradável, senão o livro sempre será deixado pela metade. Então, como o objetivo de todo escritor é ser lido (como eu sempre digo: FALA SÉRIO! Ser publicado é só o início) tenha sempre bom senso ao pesquisar, estruturar e escrever!
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